Optativa 2: Epistemologia
A Epistemologia é uma área que estuda como acontece a construção do conhecimento. Trata-se de uma área de estudo crítico sobre como validamos aquilo que afirmamos conhecer. Poeticamente, pode-se dizer que a epistemologia é o ato de colocar o “conhecimento de frente para o espelho”, sugerindo que, em vez de apenas utilizarmos o que sabemos, paramos para analisar o próprio saber: sua natureza, sua origem, suas capacidades e seus limites.
Neste artigo buscaremos traçar uma linha do tempo das três grandes abordagens que a humanidade desenvolveu para validar o saber: o senso comum, a autoridade religiosa e o teste sistemático de hipóteses, que conhecemos hoje como ciência. Cada seção a seguir representará um estágio fundamental nessa jornada, demonstrando a evolução do pensamento humano na sua incessante busca por um conhecimento confiável.
Principais meios para construção do conhecimento
Senso comum como fundamento da experiência individual
Começaremos essa linha do tempo pela mais antiga das formas de saber: o senso comum. Ele é o ponto de partida prático, o alicerce da experiência a partir do qual sistemas de saber mais complexos puderam se desenvolver.
O conhecimento de senso comum é aquele derivado da experiência cotidiana, da observação prática e da intuição. É o famoso “conhecimento popular”, vago e funcional, que se manifesta na atitude que o personagem Chicó, de Ariano Suassuna, imortalizou com a frase: “não sei, só sei que foi assim” (Suassuna, 2004). Para o senso comum, o que importa é o resultado individual – ou de baixa escala. Sua validade reside na funcionalidade; se uma prática ou crença funciona na vida diária, ela é considerada verdadeira e suficiente.
A principal diferença entre o senso comum e o conhecimento científico reside exatamente nesse critério de suficiência. Enquanto o senso comum se satisfaz em saber que algo funciona individualmente ou em pequena escala, a ciência busca compreender por que funciona, investigando os mecanismos e as causas subjacentes aos fenômenos.
O senso comum foi a forma predominante de conhecimento em inúmeras culturas e épocas, garantindo a sobrevivência e a organização social muito antes do advento de métodos mais rigorosos. Contudo, à medida que as comunidades se tornavam mais complexas, a natureza localizada e muitas vezes contraditória do saber popular mostrou-se insuficiente para criar uma visão de mundo compartilhada e estável. Essa necessidade social por um sistema de conhecimento mais organizado e centralizado abriu caminho para o papel que viria a ser desempenhado pelas grandes instituições religiosas.
Instituições religiosas organizam o conhecimento em larga escala
Historicamente, as instituições religiosas foram as primeiras grandes organizadoras do conhecimento em larga escala, estabelecendo um cânone do que era considerado verdadeiro e socialmente aceitável. Elas forneceram uma estrutura coesa para o saber, que, até então, era majoritariamente difuso e baseado na experiência local.
Antes da Revolução Científica, a validação do conhecimento era frequentemente delegada a fontes de autoridade inquestionáveis. Como descrito na obra de Chalmers (1993), a verdade não era primariamente buscada na observação direta da natureza, mas sim na autoridade textual dos “escritos de Aristóteles – e também com a Bíblia”. Essa abordagem epistemológica priorizava a tradição, a doutrina e a revelação divina em detrimento da investigação empírica, consolidando um saber dogmático e resistente à crítica.
O impacto dessa estrutura foi profundo, moldando a própria maneira de pensar por séculos. Foi contra essa rigidez que pensadores como Francis Bacon se insurgiram. Bacon criticava os “dogmas religiosos” como “ídolos”, ou seja, pré-concepções que poderiam contaminar o intelecto e impedir uma observação neutra e objetiva da natureza. A insatisfação crescente com a autoridade dogmática e a redescoberta do valor da observação direta do mundo natural foram os catalisadores que levaram ao surgimento de um novo paradigma: os testes de hipóteses.
Teste de hipóteses como processo de validação do saber
A revolução do pensamento humano, que floresceu entre os séculos XVI e XVII, representa um dos mais importantes pontos de inflexão na história da epistemologia. Sua relevância não reside apenas nas descobertas que proporcionou, mas na mudança fundamental da própria sede da autoridade intelectual: de instituições como a Igreja e os textos antigos para um processo replicável, disponível aos indivíduos. A verdade deixava de ser decretada e passava a ser validada pela combinação entre a razão e a experiência.
Esse novo paradigma foi sustentado por duas grandes correntes filosóficas que, embora distintas, fundiram-se na prática para construir a ciência moderna. São elas:
- Racionalismo: Representado por figuras como René Descartes, o racionalismo enfatiza a razão e a lógica como os caminhos primordiais para se alcançar um conhecimento seguro. Para o racionalista, a verdade é acessada por meio do pensamento dedutivo e da clareza das ideias, muitas vezes de forma independente da experiência sensorial direta.
- Empirismo: Tendo Francis Bacon como um de seus principais expoentes, o empirismo argumenta que todo conhecimento verdadeiro deriva, em última instância, da experiência e da observação. A máxima empirista, sintetizada na obra de Chalmers (1993), era a de que para compreender a natureza, era preciso “consultar a natureza” diretamente, e não os textos antigos.
A força do método científico emergente nasceu precisamente da fusão prática dessas duas filosofias: o desenho racional de experimentos, legado do racionalismo, combinado com a observação empírica de seus resultados, legado do empirismo.
Essa mudança filosófica se traduziu em uma nova prática na busca pelo conhecimento. O cientista deixou de ser um mero observador passivo para se tornar um agente ativo na investigação.
Kant (2001) – em Crítica da Razão Pura – descreve essa transformação ao citar os experimentos de Galileu e Torricelli. Ele afirma que a razão deve “forçar a natureza a responder às suas interrogações”, em vez de se deixar guiar passivamente por ela. Isso significa que a ciência passou a operar através de experimentos planejados, nos quais hipóteses são sistematicamente testadas.
A observação rigorosa e o teste de hipóteses tornaram-se o novo critério de validação, substituindo a simples aceitação da tradição e da autoridade.
Epistemologia no século XX
A filosofia moderna, por sua vez, buscou sintetizar e refinar as abordagens que a precederam. A figura central nesse processo foi Immanuel Kant, que procurou unificar o racionalismo e o empirismo. Kant (2001) argumentou que ambas as correntes eram, isoladamente, insuficientes. Para ele, a experiência sensorial fornece a matéria-prima do conhecimento, mas é a razão que organiza essa matéria em estruturas inteligíveis. Pode-se resumir essa proposta nas palavras do próprio autor: “Todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos, daí passa para o entendimento e termina na razão (…)” (Kant, 2001, p. 355).
No século XX, essa síntese foi levada a um extremo pelo Círculo de Viena e pelo positivismo lógico, que propuseram o verificacionismo: a ideia de que uma teoria só é científica e dotada de sentido se puder ser provada como verdadeira pela experiência.
Foi em resposta direta a essa visão que o filósofo Karl Popper desenvolveu o conceito de falsificacionismo. Para Popper, o critério que demarca a ciência não é sua capacidade de ser provada, mas sim sua capacidade de ser testada e, potencialmente, refutada (falseada). Uma teoria que não pode ser falseada não é científica, pois é compatível com todos os resultados possíveis e, portanto, não explica nada de forma concreta.
Considerações finais
A jornada histórica do conhecimento revela uma evolução na qual a humanidade partiu da praticidade funcional do senso comum, passou pela organização dogmática imposta pela autoridade das instituições religiosas e chegou, finalmente, à estrutura autocrítica e dinâmica do método científico. Cada estágio ofereceu uma resposta à necessidade humana de validar e organizar o que se sabe sobre o mundo.
A epistemologia moderna, contudo, não busca a eliminação de formas de saber não-científicas, mas sim a compreensão dos limites e da validade de cada uma delas. A filosofia, por exemplo, é “um outro tipo de conhecimento”, que, embora não seja científico no sentido estrito, possui sua própria validade e seu próprio domínio de investigação. O conhecimento científico não é o único modo legítimo de saber, mas é aquele que se provou mais eficaz para descrever e prever os fenômenos naturais de forma sistemática e corrigível em larga escala.
Para o estudante universitário, compreender essa trajetória histórica é uma ferramenta essencial para o desenvolvimento do pensamento crítico. Ela permite não apenas assimilar o conteúdo das diversas disciplinas, mas, sobretudo, avaliar a origem, a força e a validade das informações, dos argumentos e das teorias. Em um mundo saturado de dados e opiniões, saber questionar a natureza do próprio conhecimento é uma habilidade importante para uma jornada acadêmica e profissional bem-sucedida.
Obrigado pela leitura e bons estudos.
Referências
CHALMERS, Alan F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul Filker. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
CIENTÍSTICA & PODCAST NARUHODO. Estatística Psicobio I 2025 #07 – Epistemologia dos Testes de Hipótese. [S.l.]: YouTube, 2025. 1 vídeo (2h:19m:22s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rlPUrqHJF-k&list=PLZjaOxYREinvrzOFlRyICSLAOBG2-e0O8&index=23&t=2320s>. Acesso em: [01 out 2025].
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5. ed. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
SCICAST #406: Epistemologia. Locução: Fernando Malta, Marcelo de Matos, André Trapani, Bruno Gallas, Livia Nádia da Costa Leite, Luis Felipe Figueiredo, Felipe Novaes, Maria Oliveira. [S.l.] Portal Deviante, 20/11/2020. Podcast. Disponível em: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-406/
SCICAST #415: Epistemologia 2. Locução: Tarik Fernandes, Marcelo de Matos, André Trapani, Bruno Gallas, Livia Nádia da Costa Leite, Luis Felipe Figueiredo, Felipe Novaes, Maria Oliveira. [S.l.] Portal Deviante, 22/01/2021. Podcast. Disponível em: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-420/
SCICAST #448: Epistemologia 3. Locução: Débora Cabral, Marcelo de Matos, André Trapani, Bruno Gallas, Livia Nádia da Costa Leite. [S.l.] Portal Deviante, 03/09/2021. Podcast. Disponível em: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-448
SUASSUNA, Ariano. O Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2004.


